segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

2010/01 - A Alma Encantadora das Ruas

A mais baixa pária da sociedade carioca, aquela gente sem eira nem beira, desgraçada mesmo, lupemproletariat: essa é a matéria prima a partir da qual João do Rio escreve as crônicas reunidas em “A Alma Encantadora das Ruas”, que comecei a ler ainda no ano passado, presente de aniversário do meu enteado e sua esposa.

João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto) teve estômago para ver de perto uma cidade ignorada dentro da cidade. Vasculhou os meandros mais infectos e travou conhecimento com aqueles seres que costumeiramente olhamos de canto de olho, com fingida indiferença, carregando um quê de repúdio e um outro tanto de curiosidade.

Já disse noutro tópico que Lima Barreto descreve em “Clara dos Anjos” o Rio de Janeiro dos subúrbios que raro vemos em Machado de Assis; já João do Rio, em “A Alma...”, retrata o Rio das sarjetas, dos cantos obscuros, abafados e fétidos. Digamos que, enquanto Machado de Assis fala de um Rio nobre, Lima Barreto fala de um Rio pobre e João do Rio chega a um Rio miserável.

Ele descreve o descaminho das gentes estrangeiras em sua própria cidade, cujos dramas não chegam a comover nem interessar a ninguém - quando muito, estarrecem como um fait diver. Mas é meritoso da parte do autor o dar-lhes um registro na memória, e um nome também; ainda que suas trajetórias se repitam numa poeira sem identidade, ainda que não tenham importância em sua individualidade, o jornalista faz questão de nomear cada uma das personagens que povoam suas crônicas.

Curiosamente, essa massa esquecida consegue se reproduzir ao longo das décadas: escrito nos primeiros anos do século XX, os cenários narrados por João do Rio em “A Alma encantadora das Ruas” são essencialmente idênticos a muitos dos que nos rodeiam até hoje, mais de cem anos depois: mendicância, vício, misérias mil.

A princípio, estranhei um pouco o estilo muito palavrório e enfeitado do autor. Alguns textos mais parecem panfletos. Mas acho que seu escrever não destoa muito da maior parte dos jornalistas/escritores da época. João do Rio, ao que parece, sintetizou os vícios e as virtudes dos jornalistas de então.

Quem foi João do Rio?

A questão veio à baila durante um churrasco em família, por um grupo que vai desfilar no Império Serrano este ano e não quer fazer feio se as equipes de reportagem que acompanham o desfile eventualmente fizerem umas perguntinhas.

Bem, eu conhecia o trabalho do autor dos tempos de faculdade, mas a vontade de conhecê-lo melhor veio mesmo após a leitura de História da Imprensa no Brasil. Não é que Werneck Sodré renda muitas homenagens a João do Rio, mas, segundo ele, ao lado de Alcindo Guanabara, Paulo Barreto seria uma das figuras dominantes e mesmo caracterizadoras da imprensa brasileira no início do século XX, sendo aquele “mais jornalista que escritor” e este, “mais escritor que jornalista”.

Caracterizado como “misto de suíno e símio” no romance “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto (espécie de sátira meio ressentida do jornalismo de então), definido como “volumoso, beiçudo, muito moreno, liso de pêlo”, no dizer do colega de jornalismo e ABL Gilberto Amado, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Barreto (1881-1921) foi, no entender de Wenerck Sodré, um desses homens de muito talento que, no entanto, se perdem nos deslumbres da fama e da glória:

“Membro da academia, lido, admirado, Paulo Barreto preocupava-se apenas em administrar essa glória. E há poucos exemplos, mesmo num país de glórias efêmeras como o nosso, nessa época, de sucesso tão transitório, apesar de tão brilhante. Como todos os que colocam as suas energias mais na vida literária do que na obra literária, Paulo Barreto brilhou e passou – apagou-se depressa”.

É claro que para nós, que assistimos há cerca de uns dez anos a uma retomada do interesse por sua obra (vide, aliás, a escolha como enredo para um desfile de escola de samba), essa sentença de Werneck Sodré pode parecer injusta ou equivocada. Mas é preciso compreender que, para aqueles que assistiram ao apogeu do autor, deve ter sido curioso observar o posterior silêncio, que durou quase um século, acerca de sua obra.

Faça-se, por exemplo, rápida comparação com Lima Barreto: seus romances, por vezes, foram impiedosamente boicotados pelos grandes jornais da época; nunca chegou a ser admitido na ABL, apesar de sem-número de tentativas; morreu pobre e sem juízo. O tempo passou, foi-se a matéria, ficou a glória. Hoje, reconhecido, é leitura obrigatória até nas escolas.

Faz pensar nos artistas contemporâneos que investem mais em marketing e holofotes que na qualidade do seu trabalho. Gente de algum talento, até, mas que, para infelicidade da humanidade, são mais afeitos à cor do dinheiro que ao valor das suas obras.

Nada contra ganhar dinheiro produzindo cultura, afinal, grandes mestres como Da Vinci, Shakespeare e Dumas produziam, sobretudo, como forma de obter sustento e renda. Mas conciliavam essa necessidade pecuniária a um trabalho realmente genial. O que não é o caso de muito pseudoartista famoso de atualmente.

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