quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

A Sanfona invade a cidade das Serestas e Serenatas

O sanfoneiro Zé Calixto, sócio da UBC há 40 anos, visita Conservatória, capital brasileira da música
Texto de Clarissa Alves Machado e Luiz Carlos Prestes Filho*

"Tocar uma sanfona de oito baixos é mais difícil que acordeão. Até porque não tem mestre para ensinar", gaba-se, orgulhoso, o sanfoneiro Zé Calixto para o seresteiro Odilon Parente, proprietário da pousada "Sol Maior", localizada na Capital das Serestas e Serenatas, Conservatória.

"Mas nossa localidade", rebate Odilon, "é original e impossível de ser copiada, apesar de muito pequenina como sua sanfona de oito baixos. E não adianta levar nossos seresteiros para Diamantina, Parati ou Ouro Preto, somente o nosso casario imperial, somente este pano de fundo, faz brotar e morrer a magia das canções de amor todos finais de semana".

O sanfoneiro sorri matreiro e responde que a sorte então está do seu lado, pois se Conservatória tem que ser visitada para ser conhecida, seu instrumento tem muita mobilidade, pode invadir qualquer recanto deste Brasil, como a Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, e as festas de São João de Mossoró, no Rio Grande do Norte: "Ninguém pode ignorar o poder deste meu pé-de-bode!"

Para a platéia da seresta que acontece todos os sábados entre as 18h e 20h na "Sol Maior", Zé Calixto explica melhor: "Qualquer tecla do acordeão, abrindo ou fechando, dá somente uma nota musical. Já na minha sanfona, abrindo a tecla dá uma nota, fechando faz outra. Isso afasta o caboclo fraco de imaginação e disciplina".

Parcerias de ouro

Acompanhado de sua mulher, Rita, ele se viu mergulhado nos aplausos daqueles para quem sua música e instrumento são referências da brasilidade. Natural da Paraíba, Zé Calixto conta que nasceu no dia 16/07/1933, mas que por um erro cometido no cartório foi registrado com a data de nascimento de um primo falecido, com quem passou os primeiros anos de vida. Os dois eram Zé, então o tabelião confundiu e colocou na certidão o dia 11/08/1935: "Assim fiquei mais jovem dois anos".

Do seu casamento, que no ano que vem completa 50 anos, vieram quatro filhos, oito netos e um bisneto. Sua filha caçula é afilhada do Gonzagão: "O Rei do Baião é um capítulo especial na minha vida. Com ele viajei por todo o nordeste e fiz os melhores São João de Campina Grande, cidade onde nasci e para onde vou todos os anos". Caso estivesse vivo, Gonzagão poderia ter sido o motorista que levaria Zé Calixto para Conservatória. "Para ele", lembra o amigo, "não havia mal tempo, estradas impossíveis de atravessar, sempre foi um cabra-macho decidido, fiel condutor da música e dos amigos".

Os dois tinham boa diferença de idade e se conheceram numa rádio em Campina Grande. Zé Calixto ofereceu para Gonzagão uma música de sua autoria, que o grande forrozeiro registrou em seu gravador de fita de rolo. Quando se encontraram um ano depois no Rio de Janeiro, para onde Zé Calixto veio em 1959, soube que a gravação tinha sido apagada acidentalmente: "Tudo bem, desenvolvemos a amizade, que é assim: através dos erros que conhecemos os amigos".

Ele voltou a evocar Luiz Gonzaga ao contar episódio em que, caminhando pelas ruas sonoras de Conservatória uma outra vez, foi questionado por uma moça sobre o seu "instrumentinho", que ela apreciara muito mas que nunca havia visto ou ouvido falar: "É... amiga, foi neste instrumentinho aqui que o pai do Gonzagão, o Januário, deu seus primeiros passos, assim como o próprio Luiz Gonzaga. O Sivuca e o Dominguinhos, o último, filho de afinador, também fizeram nele a glória da qual sou um humilde servidor".

Museu da Seresta e da Serenata

Durante a noite, no Museu da Seresta e da Serenata, no centro de Conservatória, Zé Calixto tocou com os violões centenários e fez pousar nos corações a "Asa Branca" com a Rosinha de verdes olhos. Membro da União Brasileira de Compositores (UBC), ele se sentiu feliz de ver nas paredes fotografias de colegas que por ali passaram: Edson Menezes, Bidú Reis, Raul de Barros, João Roberto Kelly, Bob Nelson e Getúlio Macedo. "Como compositor, desde 1968 sou membro da UBC, que protege meus direitos autorais. Criei choros, forrós e outros gêneros. A obra mais conhecida do Zé Calixto” – diz, falando de si na terceira pessoa – “é a gravação de 'Escadaria', que é sempre lembrada faz 45 anos. O autor é o Pedro Raimundo, eu fiz interpretar e por esta interpretação entrei na História da música brasileira. E cada vez que esta obra é levada pela TV, por uma rádio ou é reproduzida numa festa, ganho o que me é de direito como intérprete".

"Para os seresteiros, receber as visitas dessas personalidades emociona. Tem relação com o reconhecimento da importância de nossa localidade para a canção de amor que veneramos. Nossa missão é manter a canção viva, inclusive todas as obras dos compositores da UBC", afirma a seresteira Marluce, que nas madrugadas de sexta e sábado caminha na serenata ao lado de Joubert Freitas, um dos fundadores do movimento da seresta há 60 anos.

No Museu Vicente Celestino, Zé Calixto encontrou imagens daquele com quem viveu momentos inesquecíveis – Jackson do Pandeiro. "Eu conheci o Jackson ainda na Paraíba, acompanhando meu pai num Pastoril. Eu era um menino de 9 ou 10 anos, ele já era um homem feito. Comecei a tocar minha sanfona de oito baixos e lembro que ele ficava encantado com o menino aqui", conta o sanfoneiro.

O conterrâneo de Alagoa Grande acabaria se tornando seu colega de trabalho: "Depois o Jackson foi embora para o Rio e São Paulo. Cidades onde o reencontrei e onde resolvemos fazer uma temporada, onde gravamos com vários outros artistas. Terminamos formando a caravana ‘O Fino da Roça’, ao lado do Elino Julião, Genival Lacerda, Messias Holanda e muitos outros. O nordeste ficou aos nossos pés naquele ano".

Zé Calixto conta sua trajetória

Relembrando sua trajetória, Zé Calixto conta que foi aos oito anos que teve início sua amizade com a sanfona: "O meu pai, que a vida toda viveu de música, foi a minha principal referência artística, mas a verdade é que ele não achava bem eu menino seguir seus passos no fole. Mas eu tinha talento, teimava, as pessoas insistiam: 'deixa o menino tocar, Seu Dideu', que é como ele era conhecido, e aí não teve saída. Eu comecei a tocar e ganhar o meu dinheirinho com a música. Meus irmãos, o Bastinho e o Luizinho, fizeram a mesma coisa que eu" .

As primeiras músicas de Zé Calixto surgiram sem compromisso profissional: com a sanfona, ganhava os tostões com o qual a mãe comprava tecido para costurar, à mão, sem maquinário algum, suas calças curtas de menino. Aos 12 anos, já enfrentava sozinho bailes e festinhas caseiras. Nos 26 já estava sendo reconhecido. "Foi quando eu decidi me casar", diz.

O convite para tocar no Rio de Janeiro, que mudaria o destino de sua carreira, veio ainda durante a lua-de-mel: "O compositor Antônio Barros, naquele ano, me convidou para tocar no Rio de Janeiro e me apresentar a uma gravadora. Fiz uma viagem de oito dias de ônibus numa estrada de chão de terra batida, mas valeu a pena. O José Loureiro, o então diretor da empresa, gostou do meu jeito na sanfona, e redigiu o primeiro contrato de minha vida. Foi ele quem me 'batizou' com o nome artístico de 'Zé Calixto'. Pouco tempo depois eu estava no estúdio".

Com o primeiro dinheiro que ganhou, o sanfoneiro voltou à Paraíba para trazer sua “calanguinha” – modo carinhoso como ele às vezes chama D. Rita – para o Rio de Janeiro, onde os dois vivem desde então.

Afinação na sanfona e no bilhar

Na sala de jogos do Hotel Fazenda Rochedo, onde ficou hospedado, Zé Calixto disse que sempre gostou de bilhar francês. “Pra jogar a carambola, é preciso ter boa pontaria e afinar o olhar, ter muita segurança nas mãos, porque o erro praticamente não pode existir”, diz. Talvez esse exercício de afinação do olhar e firmeza nas mãos seja o que lhe ajuda na busca pela exatidão na afinação do fole: "Quando vou à Feira de São Cristóvão, acompanho a venda de instrumentos musicais. Caso seja necessário, estou ali para afinar. Tenho capacidade de executar esse serviço por conta da minha formação, por ser nordestino, por saber por onde e como passam os sons".

Segundo Zé Calixto, que faz em seus instrumentos uma afinação “de ouvido” (a qual, na sua opinião, é superior à feita com diapasão em oficina), a afinação dada pelo músico nordestino “é única, nem os criadores dos instrumentos são capazes de reproduzir a escala cromática que só o nordestino conhece”. O músico leva até 15 dias para afinar uma sanfona de oito baixos, e 30 no caso de um acordeão grande. Bom mesmo é apreciar o resultado de tanta perícia e esmero, como no café da manhã na Pousada Martinez em que Zé Calixto, ao lado de Ronaldinho do Cavaquinho e Deon – figuras já conhecidas de quem visita Conservatória –, emocionaram com canções como “Último pau de arara” e “Delicado”.

A viagem de Zé Calixto a Conservatória foi, sobretudo, uma possibilidade para que, como outros artistas da UBC que já visitaram a localidade (por conta do projeto “Viva o Compositor”), ele pudesse ver de perto a cidade que não se esquece desses grandes compositores brasileiros, a cidade que executa suas obras, venera suas imagens nos museus e recebe cada um deles como se fora um velho amigo que nunca viram, mas... que sempre ouviram.

Discografia de Zé Calixto
• Forró de Seu dideu/Polquinha brejeira (1960) Sinter 78

• Oito baixos no frevo/Forró em Serra Branca (1960) Sinter 78

• Forró em Campina Grande/Xote em fá (1960) Sinter 78

• Bodocongó/Bossa-nova em oito baixos (1960) Sinter 78

• Arrodeando a fogueira/Apertadinho (1961) Philips 78

• A pisada é essa/Tempo de milho verde (1963) Philips 78

• Zé Calixto (1973) CBS LP


Fonte: http://www.dicionariompb.com.br/

Fotografia: Nubbia

O projeto “Viva o Compositor” conta com os seguintes parceiros em Conservatória:
- Hotel Fazenda Rochedo
- Pousada “Sol Maior”
- Pousada “Serras Verdes”
- Pousada “Martinez”
- Restaurante “Dó, Ré, Mí”
- Museu da Seresta e Serenata
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*Os autores do texto: Clarissa Alves Machado é jornalista e Luiz Carlos Prestes Filho é diretor de filmes documentários para TV e cinema.

Nota: Bastinho Calixto, segundo filho de Seu Dideu e D. Maria Calixto, fez músicas que fizeram sucesso na voz de artistas como Tim Maia (“O Adeus de quem tanto amei”), Elba Ramalho (“Toque de fole”) e o Trio Nordestino ("Vamos lê lê lê"); Luizinho Calixto, filho caçula, também é sanfoneiro. Ambos são sócios da UBC.
(Matéria publicada no site da União Brasileira dos Compositores em 12/02/2008 )