sexta-feira, 4 de abril de 2008

Juarez de Brito: Volante Irreverente de Conservatória
*Texto de Clarissa Alves Machado e Luiz Carlos Prestes Filho

Direção musical. Madrugada. A Van sai de Irajá, atravessa a Avenida Brasil, entra na Penha, pega gente; vai até os bairros do Leblon e Flamengo, pega mais gente. Já amanheceu. Faz rápida escala na Rodoviária Novo Rio, onde entram novos passageiros. Em Nova Iguaçu, sobem os últimos. Em seguida, vai direto a Conservatória, Capital Brasileira das Serestas e Serenatas, com direito a esticar as pernas na Parada Modelo, que fica logo após o pedágio na Rodovia Presidente Dutra.

No volante, Juarez de Brito, proprietário da Van: "Foi no início de 1978 que conheci Conservatória, e depois disso a cidade nunca mais saiu da minha vida. Papai havia sido convidado pela Rede Globo para gravar uma matéria especial, a idéia era mostrar Guilherme de Brito entre os Seresteiros de Conservatória, e eu fui o responsável pelo transporte dele até lá. Papai só confiava na minha direção, não aceitou ir noutro carro. Lembro que enfrentamos uma estrada de chão batido e ficamos hospedados no Hotel Vila Real, do saudoso Seu Luis”.

Serenata. Foi naquela visita que o fundador do movimento da Serenata, José Borges, lhe disse: “menino, você tem de seguir os passos de seu pai’". Em Conservatória, após deixar os visitantes nos hotéis e pousadas, o "empresário de transporte", como é conhecido, se transforma em seresteiro: pega o seu violão e se une a Joubert, irmão de José Borges, que continua na liderança do movimento musical.

"Sinto saudade do tempo em que toda cidade se mobilizava em torno da serenata. A população local participava mesmo. Os violões iam até a Locomotiva, e quando se passava pelas janelas das casas, as pessoas ofereciam café. Uns, um café que nem tinta, outros, um café que parecia chá de batata, mas todos estavam na janela para acompanhar”, brinca um Juarez nostálgico. “Hoje, o Joubert e o Edgard são os grandes bastiões da Serenata. Mas temos que saber criar uma nova geração. Como sócio da União Brasileira de Compositores (UBC), entidade onde meu pai foi diretor, consegui apoio para comprar dezenas de violões para um projeto que idealizei, de formar jovens seresteiros. Quem sabe, em breve, pode dá certo?", pensa Juarez, que também participa e apóia outra iniciativa da UBC – o projeto VIVA O COMPOSITOR.

Irreverência. Para Sebastião Martinez, empresário local, a presença de Juarez na localidade encanta os turistas: "Primeiro pela lembrança de seu pai, lenda da MPB, parceiro de Nelson Cavaquinho; segundo, por conta das músicas e histórias irreverentes que ele conta nos cafés da manhã na minha pousada”, revela o dono da Pousada Martinez.

"Eu, irreverente?", pergunta rindo Juarez. Diz que somente conta para os presentes algumas passagens de sua vida, como a de uma entrevista de seu pai no rádio, quando foi questionado no ar: “Guilherme, você é famoso por ser sempre um cara muito honesto, correto, metódico, pontual. Você nunca fez nenhuma besteira na vida?", ao que Guilherme de Brito respondeu: "Fiz, sim. Meu filho."

Foi na Pousada Martinez, aliás, que um dos episódios mais inusitados de sua vida artística teve lugar... o qüiproquó aconteceu quando Juarez cantava uma “declaração de amor” muito peculiar, feita para sua esposa, chamada “Mulher Perfeita”:

Meu amor: salve este contracheque maravilhoso! Senha: 8832 (fala)/ Vou descrever uma mulher perfeita / Por coincidência vive ao meu lado / Rostinho cheio, cabelo aloirado / Papo no queixo e em outras partes mais/ No corpo inteiro leva só pelanca / Sua barriga não vou comentar / Na linda perna tem tanta varizes / Sinceramente eu acho indecente / Até parece o rio Amazonas / Acompanhado dos seus afluentes /Vive falando que vai na Socila / Nem ela mesma sabe por que vai / Quando se arruma põe tanta cinta / Toda família ajuda a apertar / Mas felizmente, ela é minha esposa / Tem uma filha e um filho moço / Pra quem há tempos comeu a carne, só resta agora resta roer o osso / Se ela morrer eu morro (fala).

Até que uma mulher, juíza aposentada, se levanta e, aos berros, parte para cima de Juarez:

- Essa sua canção que é uma aberração, é uma indecência! Você é uma coisa horrorosa, você é um típico homem brasileiro, você não respeita nem sua mãe, nem sua filha... não tem amor em você, seu cafajeste!

- Eu?! Mas... minha mulher está aqui ao meu lado... ela gosta e admira minha obra musical e o meu jeito de cantar! Quanta bravata a senhora está jogando para cima de mim!

- Eu vou processar você e estes seus amigos! Que horror, na cidade de canções românticas surgir um vagabundo assim!

- Peraí! A senhora pode não gostar da minha declaração de amor a minha mulher... mas eu sou trabalhador, eduquei meus filhos com o suor do meu trabalho. Peraí!

- Vou processar!!! Vou processar!!!

Memórias. Nascido e criado na favela de Ramos, Juarez sempre admirou e seguiu os passos do pai e da mãe, Dona Nena: "Papai era atento, não deixava eu e a minha irmã, Diana, ir para a escola nos dias em que a favela ficava cercada pela polícia ou quando os traficantes colocavam drogas nas mochilas das crianças para fazer chegar do outro lado da Avenida Brasil. Foi ele que me encaminhou para estudar música no Conservatório de Música de Ramos. Mas nossa família não tinha recursos para comprar um piano para eu estudar em casa. A solução que papai encontrou foi me presentear com um acordeon. Eu detestei! Na escola, a criançada chamava aquilo de piano de colo. Desmotivado, acabei tomando gosto pelo violão. Eu tinha dois tios que tocavam na rádio Roquete Pinto: o Waguinho, que tocava o de sete cordas, e o Álvaro, que tocava o de 6 cordas. Foi com eles que aprendi a tocar, por volta dos doze anos."

Documentos daqueles anos de infância estão expostos nas vitrines do Museu Guilherme de Brito, no centro de Conservatória. Local para onde o próprio Guilherme doou todo o seu acervo artístico e de vida profissional de contador. Para Wolney Porto, diretor do museu, o desafio da exposição foi fazer valer a letra da canção Quando Eu Me Chamar Saudade, uma das parcerias mais conhecidas de Guilherme de Brito com Nelson Cavaquinho:

Sei que amanhã / Quando eu morrer / Os meus amigos vão dizer / Que eu tinha um bom coração / Alguns até hão de chorar / E querer me homenagear / Fazendo de ouro um violão / Mas depois que o tempo passar / Sei que ninguém vai se lembrar / Que eu fui embora / Por isso é que eu penso assim / Se alguém quiser fazer por mim / Que faça agora / Me dê as flores em vida / O carinho / A mão amiga / Para aliviar meus ais / Depois que eu me chamar saudade / Não preciso de vaidade / Quero preces e nada mais

"O museu surgiu por conta de minha proposta e do empenho do Guilherme e de Dona Nena", conta Wolney. "Lembro o quanto ele ficava inseguro em transportar todo este material único, com fotos, discos, objetos e até quadros pintados por ele. Mas na abertura ficou comovido, pois muitos de seus parceiros não tiveram a mesma sorte. As imagens de Clara Nunes e do Pixinguinha ao seu lado são memoráveis! Todo visitante pergunta se são fotografias originais mesmo. Quando afirmo que tudo veio da casa do Guilherme, ficam em estado de graça."

Quem sabe não é a esta simplicidade dos anônimos visitantes do museu Guilherme de Brito que Juarez se refere ao falar de sua ligação com Conservatória: "Eu me encontro nesta gente humilde, na conversa à toa jogada fora nos botequins, na música que essa gente simples guarda com suas recordações, que busca no museu. Isso faz me sentir em casa, me traz de volta o calor do meu pai que já se foi".

“A flor e o espinho” e “The top cats”. Foi com a benção de José e Joubert Borges que Juarez formou, no início da década de 1980, o grupo “A flor e o espinho” (nome sugerido pelo pai, inspirado em uma de suas mais famosas composições). Além do violão de 7 cordas de Juarez, o grupo contava com o violão de 6 cordas de Ney Vieira, o cavaquinho de César, o bandolim de Paulinho e o pandeiro de Joel Maluco. Para cantar, Joel convidou um primo seu, Zeca, que acompanhou o grupo entre 1982/1983(algum tempo depois, esse mesmo Zeca começaria a freqüentar o “Cacique de Ramos”, onde conheceria Beth Carvalho – que lhe daria o auspicioso apelido de “Pagodinho”). O grupo “A flor e o espinho” fez apresentações nos Clubes Guanabara, Viçosa, Florença e Curtume Carioca, e foi desfeito no final dos anos 1980.

O início da trajetória musical de Juarez, porém, vem de mais longe: no tempo em que ainda servia o Exército, em que chegou a cabo no ano de 1968, já cantava composições próprias. Depois, aos vinte e poucos anos, criou o conjunto de rock "The top cats", imitação assumida do grupo "The pops". O guitarrista da banda era o atual subchefe da polícia civil, Dr. Ricardo Martins. No contrabaixo, ficava Irineu, hoje marido da irmã de Juarez. O grupo tocava no Programa Haroldo de Andrade, no Canal Excelsior, e em paragens como o Clube Viçosa, em Vista Alegre, bairro de Irajá, no Clube Curtume Carioca, bairro da Penha, e no Tijuca Tênis Clube, na zona norte da cidade.

Certa vez, num concurso em que concorriam bandas como “The Fevers” e “Golden Boys”, conquistaram o primeiro lugar. Mas o dia em que iriam gravar o primeiro LP foi o mesmo em que Juarez deveria começar a trabalhar na Souza Cruz, através de um pedido de seu pai. Entre tentar a sorte e aceitar o emprego fixo, ficou com a segunda opção. Juarez lembra que, nessa ocasião, o próprio Haroldo de Andrade, que então morava em Brás de Pina, o chamou e insistiu para que fosse gravar o LP. Mesmo assim, não foi, e sem ele o restante do grupo desistiu de ir.

Perdas e Ganhos. Na Souza Cruz, Juarez trabalharia por dez anos. Lá também trabalhava Valquíria, uma moça que, como ele, morava em Irajá. Os dois não se conheciam muito bem, mas colegas perguntaram a ele se não poderia dar uma carona para a moça, que estava muito abalada com a perda recente de um irmão. As viagens lado a lado até Irajá acabariam numa união que já dura há 38 anos – e na “declaração de amor” contada lá em cima.

Em 1979, Juarez e Valquíria decidiram juntos pedir demissão da Souza Cruz. Com o dinheiro obtido, comprariam o primeiro apartamento e um táxi. Talvez tenham sido os cinco anos em que Juarez trabalhou como taxista que definiram dois de seus traços marcantes: a paixão por dirigir (em tempo: o último desejo de nosso entrevistado é ser enterrado junto ao volante de um monza que guarda secretamente em sua casa com esse único propósito) e o jeito hábil de lidar com o público, que lhe dá ares perenes de relações públicas. Foi o jeito divertido e carismático, aliás, que fez um amigo pressentir no taxista um talento para vendas, de onde veio o convite para trabalhar na empresa Tupaíba Ferro e Aço. Lá, Juarez faria carreira, fechando com habilidade negociações importantes e cativando a clientela com a muita graça e bom humor costumeiros. Em 1997, depois de 15 anos de trabalho no setor, decidiu finalmente se aposentar, para tristeza do amigo. Foi com a aposentadoria que a vida como “empresário de transporte” começou.

Hora de voltar. A Van reúne os visitantes, que levarão belas memórias de Conservatória. Passa por Nova Iguaçu e deixa passageiros; faz escala na Rodoviária Novo Rio, nova despedida; vai até os bairros do Leblon e Flamengo, deixa mais gente; chega até a Penha...

Apoiadores do projeto VIVA O COMPOSITOR:

Hotel Fazenda Rochedo
Museu da Seresta
Pousada Martinez
Pousada Serras Verdes
Pousada Sol Maior
Restaurante Dó-Ré-Mi
Transportes Juarez de Brito
(21) 2473-1417 / (21) 9715-2511 / (21) 9911-1221



*Os autores: Clarissa Alves Machado é jornalista. Luiz Carlos Prestes Filho é diretor de filmes documentários para TV e cinema.