quinta-feira, 6 de março de 2008


A Travessia de Lígia Jacques e de Rogério Leonel...
por Conservatória
Texto de Clarissa Alves Machado e Luiz Carlos Prestes Filho
Legenda da fotografia: O casal Ligia Jacques e Rogério Leonel
com o seresteiro Joubert de Freitas


“Sentimos em Conservatória que estamos vivos, que a nossa arte vai sobreviver aos tempos. Como seria importante para os músicos de Belo Horizonte sentir o que sentimos neste momento. Aqui não é a mídia que manda. Aqui se preserva o DNA da nossa canção de amor”, desabafou, entre um gole e outro de cachaça, Rogério Leonel, no Restaurante Dó-Ré-Mi, local de encontros poético-musicais no centro de Conservatória. Visitando a Capital das Serestas e Serenatas pelo projeto VIVA O COMPOSITOR da UBC, ao lado da cantora Lígia Jacques, sua companheira de vida e de profissão, o músico era a própria confirmação das profecias de José Borges: “Virá um futuro em que os compositores e músicos profissionais virão ouvir os seresteiros para sentir o sabor da improvisação, do amadorismo, das vozes desafinadas, mas cheias de amor e espontaneidade que faltam no mundo de negócios musicais”.

Lígia, que comparou a seresta a um ritual “quase religioso, parecido com a comunhão da meditação”, cantou para o seresteiro Joubert – irmão mais moço de José Borges, que com ele fundou a tradição da serenata – logo no primeiro dia de sua viagem a Conservatória. Ao conhecer, no Museu da Seresta, a cantora mineira que desde os fins da década de 70 atua no cenário musical de Belo Horizonte, Joubert lhe pediu que mandasse um beijo para todas as mulheres de BH – para os homens, mandou apenas um “cruz credo”.

“Casamos na música”

A parceria musical de Rogério e Ligia começou em 1979. Naquele ano, seria realizado o Festival de Música da UFMG (onde Ligia então cursava Biblioteconomia), e ela foi convidada para cantar a canção que ele havia preparado para o festival. “O primeiro arranjo vocal de música popular que eu fiz, foi a primeira que ela cantou”, conta ele. Os dois se conheceriam no “Bar do Tadeu”, ponto de referência dos músicos de Belo Horizonte.

Por essa época, Rogério – filho de um sanfoneiro do interior de Minas, que aos dez anos ganhara o primeiro violão e aos treze “tirava de ouvido” grandes artistas – já vivia de música, enquanto Ligia começava a se integrar a esse universo, atuando junto ao “Grupo Mambembe” (ligado a outros importantes nomes da música mineira, como Toninho Camargo, Ricardo Faria e Titane). “Rogério influenciou e desenvolveu a minha trajetória”, diz Ligia, a quem as turnês levariam a se apresentar em cidades como Brasília, São Paulo, Campinas e, no interior de Minas, Januária e Itambacuri.

Museu Vicente Celestino

As imagens nas paredes do Museu Vicente Celestino, atraíram a atenção do casal, por remeter a um universo de 80 anos atrás. Entre as peças em exposição, o figurino do filme “O Ébrio”, o piano de Vicente Celestino – sobre o qual há um antigo e amarelecido livro de partituras editadas pela UBC –, prêmios de Jorge Goulart e Nora Ney, documentos de Silvio Caldas e Clara Nunes, figurinos de Gilda Abreu e Emilinha Borba. Universos que poderiam ter desaparecido se não fossem os cuidados de Wolney Porto, curador do museu: “Hoje meu trabalho está cada vez mais técnico, seco. Tento não me angustiar com tantos fragmentos de nossa História que estão desaparecendo por falta de apoio financeiro. Tem meses que não tenho recursos para comprar material para combater fungos e cupins. Até mesmo a conta de telefone já foi cortada. Mas essa é a vida de quem trabalha com a memória nacional. Já me conformei. Tento não me emocionar mais”, diz.

“Tenha certeza Wolney”, rebateu Rogério, “que seu trabalho é importante por este lado do sacerdócio. Por demonstrar que nada nesta vida tem somente o valor do dinheiro. Existe no seu museu Vicente Celestino o valor da energia, o valor da ‘sentimentação’, o valor do simbolismo. É uma força enorme que envolve até o visitante apressado, que termina abatido pelo encantamento”, disse emocionado. Durante a visita, a presença da atmosfera da Rádio Nacional, especialmente na área dedicada ao casal Jorge Goulart e Nora Ney, lhe fez lembrar do tempo em que sintonizava o rádio para ouvir o irmão mais velho, Antônio, cantar num programa realizado na cidade mineira de Passos. O irmão, já falecido, era dez anos mais velho e “tinhoso, não perdia uma briga”, o que lhe valeu o apelido desde pequeno de “Antônio Lampião”.

Para o casal, que trabalha com o repertório da MPB, o Museu Clube da Esquina, em Belo Horizonte, é bem diferente dos museus de Conservatória, que ficam abertos nas madrugadas, esperando a passagem dos seresteiros e, conseqüentemente, dos turistas. “O Museu Clube da esquina tem ciclos de palestras, reúne compositores e músicos que fizeram parte daquele movimento cultural, divulga o conteúdo de toda uma geração, mas não tem esse diálogo mágico que o Wolney criou. Penso que haveria espaço para um intercâmbio super-positivo entre as instituições”, diz Rogério. “Quem sabe poderíamos lá organizar um ciclo sobre a serenata de Conservatória, que promoveu o desenvolvimento econômico e social da localidade, e o Clube da Esquina, que interferiu nos processos políticos e estéticos de todo o Brasil nos anos70?”, sugere.

Baião Barroco

Na seresta da Pousada Sol Maior, Rogério acompanhou Ligia na interpretação de Baião Barroco, música de Juarez Moreira letrada por Simone Guimarães, criada em 1989. Nas mãos, o violão feito sob medida na oficina de Vergílio Lima, de Sabará, com afinação “Rio Abaixo”:

“... Chama o povo que a noite estrelou / Vidro de fogo e vento de palmeira / Um homem saiu de dentro de uma estrela / E me dizia o teu nome, o teu nome, o teu nome... / O teu nome, o teu nome / Então um anjo voou da boca de um cantor / É meu canto de amor ...”

Além de Juarez Moreira, outros nomes destacados pelo casal no cenário musical da BH de hoje são Toninho Horta (um dos fundadores do Grupo Mambembe, cuja poesia tem forte ligação com a de Noel Rosa), Ladston do Nascimento, Sérgio Santos (parceiro de Paulo César Pinheiro), Flávio Henrique, Weber Lopes, Oiliam Lana (destaque da música erudita mineira), a cantora Loslena (que tem resgatado os trabalhos de Zé Neto, indigenista e poeta, autor de “Paraisagem”), e Hufo Herrera, argentino há vinte anos radicado em BH. Ligia considera que o crescimento da produção musical dos últimos anos é parte de um movimento geral: “A música instrumental cresceu depois da regulamentação da Lei de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, que estimulou a produção de CDs e espetáculos”.

As experiências do casal no ensino de música e canto (Ligia atua como professora de canto e preparadora vocal; Rogério leciona música em escolas, como o tradicional Colégio Estadual Milton Campos) lhes permite acompanhar o desenvolvimento das futuras gerações na música. Na opinião do professor Rogério, harmonia é um dos desafios para a maioria dos músicos. “Há aqueles que têm harmonia, mas não têm poesia, e aqueles que têm poesia, mas não conseguem ter harmonia”.

Sobre a arrecadação de direitos autorais dos compositores, músicos, arranjadores e intérpretes mineiros, ainda incipiente diante de sua importância, os dois pensam que se deve à falta de uma cultura de valorização da importância da gestão de bens intangíveis: “Existe uma dificuldade no entendimento do papel estratégico dos direitos autorais. Os valores de arrecadação e de distribuição, dizem alguns profissionais, são baixos e isso faz eles não correrem atrás de informações sobre o tema”.

Travessia

“Quando você foi embora, fez-se noite o meu viver...”. Antes de partir de Conservatória, Ligia prestigiou as pessoas à sua volta cantarolando a conhecida música de Milton Nascimento e do amigo do casal Fernando Brant: “Brant não deve ter noção do que se fez nestas terras pela música brasileira, inclusive, pelas canções que ele compôs. Quando vemos as centenas de placas que contêm o título e o nome do autor de uma canção, afixadas nas fachadas das casas de Conservatória, o coração diz que ele tem que conhecer este lugar. O Fernando tem que viver estas placas inauguradas por um Dorival Caimmy, Paulinho Tapajós, Edmundo Souto, João Roberto Kelly, J .Junior, Beth Carvalho. Ele vai adorar ouvir as vozes desafinadas cheias de amor e espontaneidade”

Disco:

Choro Barroco (2001)

Fontes:
Site oficial Ligia Jacques
http://www.ligiajacques.com.br/

Site da oficina do Luthier Vergílio Lima
http://br.geocities.com/vergilioarturlima/

Museu Clube da Esquina
http://www.museudapessoa.net/clube/index.shtml

Letra de Baião Barroco
http://letras.terra.com.br/simone-guimaraes/608926/

Fotografia: Lena Bela

Apoiadores do projeto VIVA O COMPOSITOR:

Hotel Fazenda Rochedo

Pousada Serras Verdes

Pousada Sol Maior

Pousada Martinez

Restaurante Dó-Ré-Mi

Transportes Juarez de Brito
(21) 2473-1417 / (21) 9715-2511 / (21) 9911-1221

Museu da Seresta

*Os autores: Clarissa Alves Machado é jornalista. Luiz Carlos Prestes Filho é diretor de filmes documentários para TV e cinema.